segunda-feira, 21 de julho de 2014

A ÚLTIMA JABUTICABA DA BACIA


 

O que era carne, voz, afagos, sorrisos, olhar e pensamento se foi. O mestre não está mais entre nós. Comeu a última jabuticaba da bacia.

A matéria fisiológica, pulsante, morna e abraçável se foi, mas fica a obra. A lembrança. As inúmeras declarações de amor à vida.  Ficam os ensinamentos.  Porque mestres de verdade não morrem; transmutam-se, afirmou algum dia algum sábio. Rubem não morreu. Transmutou-se.

As lembranças que tenho de Rubem Alves são muitas. Se confundem com minha docência, tão impregnado estou dos seus ensinamentos, que me foram trazidos primeiramente pelo amigo e colega de profissão Hélio Godoy em 1987, na forma de urubus e sabiás. Logo depois veio o também biólogo Erich Fisher falar de frescobol e tênis, desjogos, a não competição, tudo isso em uma reunião de departamento em que saíam faíscas.

Suas belas crônicas nutriram tantas e tantas aulas e discussões que desenvolvi com meus alunos de Prática de Ensino de Biologia dos anos 90, me inspiraram tantas reflexões e resoluções de vida e poemas como Os Reis do Pedaço – que para ele dediquei e fui retribuído com uma carinhosa mensagem por email –, que posso dizer que Rubem vive dentro de mim.

Crônicas como a que aqui faço referência/deferência*, em que Rubem figura a vida em uma bacia de jabuticaba, fruta tão brasileira e cheia de significados para as crianças do seu tempo. É como se Rubem dissesse: quando nascemos ganhamos única bacia de jabuticabas, essas túrgidas e doces frutinhas que vão ser rapidamente consumidas pelo tempo, aproveitemos ou não o conteúdo da bacia. E quando já estamos para lá da metade da comilança dessas dadivosas delícias deitadas na bacia do tempo – como eu estou nesse 2014 –, começamos a fazer a conta de quantas jabuticabas faltam, quantas comemos ou desperdiçamos. Momento mais filosófico não há: mais que saber de onde viemos, o que somos ou para onde vamos, saber o que fizemos durante o caminho, o que fizemos das jabuticabas que recebemos ao nascer.

Só em maio de 2011, quase meia bacia de jabuticabas depois de ler sua crônica, conheci o maior filósofo brasileiro pessoalmente, durante sua palestra no Festival de Inverno de Bonito. Falou-nos do processo de envelhecimento, da necessidade de aceitação da palavra velho, das condições associadas à senescência e outros assuntos. Melhor idade? Não sou da melhor idade, terceira idade, essas bobagens... Sou um velho, disse Rubem mais ou menos assim. Um velho que não se cansa de ensinar, rir e criar, pensei. Nessa manhã, as jabuticabeiras da cidade estavam floridas.

Paulo Robson de Souza
(20.7.14 )
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* O Tempo e as Jabuticabas

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